O estudo associa a explicação conceitual da dinâmica da figuração com a análise de personagens da tradição literária, com o intuito didático de amparar o leitor no seu processo de recepção e conhecimento dessa categoria da narrativa. Pondo em diálogo paradigmas teóricos tradicionais com os estudos narrativos contemporâneos, no decorrer dos capítulos, as autoras indicam, ainda, transformações epistemológicas que se combinam à variação de estratégias discursivas na composição da figura ficcional.
--- "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos", diz uma das personagens de Ensaio sobre a cegueira […], de José Saramago, tentando traduzir em palavras a natureza misteriosa que constitui os seres humanos, ainda que esteja falando como um ser fictício. Uma das maiores potencialidades da ficção narrativa […] é justamente a capacidade de […] nomear o que há "dentro de nós", […] de criar dispositivos que permitam melhor entender o "coração da personagem" […].
Raquel Trentin e Gisele Seeger partem, neste livro, da distinção básica entre pessoa e personagem, para deterem-se na especificidade do fazer personagem. Para isso, não dispensam noções consagradas, como a de caracterização, mas as expandem, apoiadas nos atuais estudos narrativos. A personagem é concebida, antes de mais, como um signo linguístico. Como tal, constitui-se por via de dispositivos discursivos. O narrador e a focalização, a caracterização do espaço e a organização temporal do discurso narrativo interferem sobremaneira em sua figuração. Mas não só. A história existe porque a personagem é um ser ficcional. Além de um corpo que lhe permite atuar diretamente no mundo representado, possui motivações que as levam a agir de determinada forma, ou mesmo a não agir. E como na maior parte das vezes não existe isolada, mas em uma espécie de constelação, extrai sua especificidade das diferenças em relação aos demais habitantes do mundo ficcional. Não quer dizer que fica restrita a esse mundo. A depender de sua capacidade de sobrevida, pode habitar outros mundos, refigurar-se. A personagem, como compreendida neste livro, ressignifica, por fim, num mundo que é seu, sentidos que são parte do nosso. Por isso, sua existência é subordinada à atividade do leitor, de cujo imaginário depende para ganhar vida.