Entrevistamos a professora Giuliana Redin, organizadora do livro Migrações Internacionais: experiências e desafios para a proteção e promoção de direitos humanos no Brasil. O livro é oriundo de trabalhos realizados pelo Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional - Migraidh, nos quais discutem as questões das migrações internacionais e os direitos humanos.
A obra contém 11 capítulos que envolvem assuntos relacionados às Ciências Sociais, Ciências da Comunicação, ao Direito, às Letras, entre outras.
Na sequência você acompanha nossa entrevista com Giuliana Redin.
Ed: Qual o papel dos direitos humanos na sociedade?
Giuliana: Os direitos humanos na nossa sociedade representam um avanço civilizatório, pois dizem sobre o outro, trazem o consenso mínimo ético baseado no reconhecimento desse outro e sua condição, não importando qual seja, e, por isso, é a condição da nossa própria existência como seres desejantes, não subjugados, íntegros. Sem os direitos humanos, ficamos expostos à barbárie, à negação do outro e, portanto, à nossa própria sujeição, ao fascismo que aniquila o outro pela sua diferença e, portanto, aniquila-nos porque também somos o outro. Direitos humanos são o pressuposto da democracia. Em momentos de crise, os direitos humanos precisam ser reafirmados ainda mais, pois a crise traz o medo do desamparo, da desassistência, e há uma maior tendência a serem apontados os “bodes expiatórios” para as crises, que são o outro: o pobre, o negro, a mulher, o indígena, o LGBTI, o imigrante, aquele oprimido e excluído estruturalmente. Sobre esse outro recaem os discursos de ódio e a violência a que estão sujeitos os excluídos com o argumento de que os “direitos humanos são para humanos direitos”, de que é preciso respeitar deveres como condição para se acessar direitos. Então a vida é descartável: o jovem negro da periferia passa a ser o culpado pela insegurança pública; o imigrante passa a ser o responsável pela sobrecarga dos serviços públicos; o pobre passa a ser o custo insustentável do Estado e não o sistema financeiro, etc. Esse é um senso comum perverso, que coloca na existência da pessoa humana, no outro, o medo da falta, da falta de emprego, renda, saúde, educação, segurança. Em momentos como esse de pandemia, de estado de emergência, há uma tendência a reduzir ainda mais a agenda de direitos humanos, de se dar respostas de um estado de exceção a um estado de emergência ou de crise. A pandemia não apenas expôs como aprofundou a desigualdade social que se move nessa lógica da exclusão, precarizando muito mais os grupos sociais vulneráveis, dos quais os migrantes e refugiados, a quem é colocado o fardo dos custos do Estado, onde as próprias instituições alimentam discursos “antes para os nacionais”, que os considera corpos trabalho, permanentemente provisórios.
Ed: Qual a importância da política da UFSM em receber calouros migrantes?
Giuliana: Por se tratar de uma ação afirmativa é uma política de promoção dos direitos humanos. Essa política de ingresso de migrantes e refugiados na UFSM é baseada na igualdade de oportunidade, ou seja, cria condições para excluídos socioeconomicamente poderem acessar a universidade pública, a partir da sua condição desigual. Foi desenvolvida pelo Migraidh, que apresentou a proposta em 2014, baseada na realidade das múltiplas vulnerabilidades a que estão submetidos migrantes e refugiados no Brasil e em critérios de facilitação documental e inexigibilidade de provas seletivas ou domínio da língua portuguesa. Além da universidade cumprir com a sua função social, de promover transformação social e tocar nas estruturas históricas de dominação e exclusão, a presença do imigrante e do refugiado no universo acadêmico traz a riqueza da diversidade que representa: dos saberes, da cultura, do modo de vida produtiva. O imigrante e o refugiado trazem novas oportunidades para a universidade, de uma vivência que impacta na produção do conhecimento, no desenvolvimento humano e social. Mas essa presença também revela o quanto a nossa sociedade é xenófoba, pois é na universidade que a nossa sociedade está representada, uma xenofobia baseada no medo do outro por sua diversidade linguística, cultural, social e econômica, sua estrangeiridade, carimbada na nacionalidade que carrega. O estudante imigrante e refugiado questiona a nossa própria instituição, os processos de produção do conhecimento, da aprendizagem e seus serviços, que tendem forçar sua assimilação. Enquanto outras universidades no Brasil mesmo em tempos de corte de recursos estão abrindo vagas para migrantes e refugiados por entenderem a importância dessa política tanto quanto das demais ações afirmativas, a UFSM tem mantido suspensa a política de ingresso desde o segundo semestre de 2018. Talvez, por ser desafiada diante da diversidade que os estudantes migrantes e refugiados trazem. E em tempos de crise, onde o sentimento de desamparo se torna mais concreto, é mais fácil justificar a supressão de direitos a partir dos “bodes expiatórios”.
Ed: No âmbito do trabalho, como oferecer plenas condições para que o migrante refugiado se insira no mercado de trabalho?
Giuliana: Essa é uma boa pergunta que encontra como resposta a política de ingresso na UFSM, por exemplo: oportunidade de qualificação no país de destino. Dos refugiados no mundo, segundo a Agência das Nações Unidas para Refugiados, apenas 3% consegue acessar a educação superior. Migrantes e refugiados quando possuem educação técnica ou superior encontram enormes dificuldades no Brasil para validação de diplomas. Mas são muitas outras as barreiras vivenciadas pelo migrantes e refugiados, um exemplo, dos mais significativos, é a linguística. A falta de domínio do idioma precariza ainda mais a situação do migrante e do refugiado, é mais fácil submetê-lo ao subemprego, à margem de direitos e serviços públicos. Portanto, a aprendizagem da língua portuguesa é um importante instrumento de inserção laboral. Outra barreira é a documental: para imigrantes e refugiados regularizarem condição migratória e abrirem até uma simples conta bancária, precisam passar por uma enorme burocracia e até a falta de conhecimento de agentes públicos sobre seus direitos e condição de não nacional.
Ed: Por que o brasileiro trata o estrangeiro migrante de uma forma diferente do que trata o estrangeiro colono?
Giuliana: Essa é uma pergunta que contém uma conclusão: Por que somos xenófobos? Quando falamos na ideia do Estado-nação, estamos falando de Estado-xenófobo, é um pleonasmo. Trata-se da formação da identidade nacional baseada em um ideal construído a partir da presença européia, dos seus valores e modo de vida. No final do século XIX e início do século XX, havia uma política nacional de inserção do imigrante europeu em um regime de colonização, portanto, trata-se de uma imigração em condições e causas muito diferenciadas das migrações contemporâneas. Em 1934 tivemos no Brasil uma Lei de Cotas para o ingresso de imigrantes, privilegiando a imigração européia e o branqueamento da população brasileira. A sociedade brasileira foi forjada em um racismo estrutural e um classismo que têm criado distorções sociais brutais a partir das elites dominantes do país que se beneficiam da exclusão. E é dentro desta estrutura de classificação racial e de classe que o imigrante é inserido. Então a discriminação se estabelece não a partir do fato da nacionalidade, mas da estrangeiridade, ou seja, de uma certa nacionalidade que é estereotipada pela raça e pela classe: os não desejáveis, o imigrante do Sul Global, aquele que é permanentemente colocado em um lugar provisório. São comuns discursos de identificação com o “imigrante bem sucedido”, em referência ao imigrante europeu e isso é muito representativo da xenofobia presente na nossa sociedade.
Ed: Quais são as maneiras de desmistificar a figura do estrangeiro e refugiado?
Giuliana: A nossa sociedade precisa entender que a sua formação é baseada na exclusão do outro. O estrangeiro é sempre colocado em um discurso de ameaça, há uma exclusão originária baseada no fato da nacionalidade, mas que aparece na sua estrangeiridade, ou seja, o estrangeiro precisa sempre “justificar” a sua presença. É preciso que avancemos em entendimento sobre os direitos humanos e convocarmos a responsabilidade do Estado em promover igualdade, que avancemos no entendimento sobre o fato de que a imigração é um direito humano e implica em riqueza para o desenvolvimento da nossa sociedade, que avancemos no entendimento de que migração é agenda de direitos humanos e não de segurança do Estado. É preciso desmistificar esse medo do outro não nacional, como aquele que irá tomar os empregos, sobrecarregar os serviços públicos, etc. Isso é colocá-lo no patamar de “bode expiatório” de questões estruturais do sistema capitalista. Apesar da Lei de Migração que institui uma agenda de direitos humanos e fundamentais para as migrações no Brasil, apesar de uma Lei de Refúgio que assegura proteção a quem solicita amparo no nosso país por situação de massiva violação de direitos humanos, nesse momento de pandemia, por exemplo, o atual governo mantém fechada a fronteira do Brasil com a Venezuela, com o argumento de que precisa reservar os serviços de saúde aos nacionais. Esse é o exemplo de instituição de um estado de exceção em um estado de emergência. Isso mostra o quanto precisamos avançar como sociedade.
Ed: Como você se posiciona diante das políticas de migrações como controle social?
Giuliana: É uma enorme violência pensarmos em uma política de Estado que trata pessoas como mera força de trabalho, sem direitos, sem qualquer possibilidade de participação política e, ainda, sob ameaça de deportação de não se enquadrar. Qualquer política migratória seletiva, que priorize qualificação, raça, classe, é absolutamente totalitária. Qualquer política migratória que feche fronteiras por critérios de classificação social, interesse econômico ou para impedir acesso aos bens públicos, é totalitária. O ato de migrar é um direito humano dos mais essenciais. Apesar disso, a Declaração Universal de Direitos Humanos reconhece como direito apenas dentro das fronteiras, autorizando os Estados o controle sobre corpos baseado no fato da nacionalidade. Isso precisa ser superado como política de direitos humanos.
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