Transformando Discursos em Corpo e Corpo em Arte: Entrevista com os Organizadores da Coleção

Discursos do Corpo na Arte 

 
Neste mês, a Editora UFSM lança seu primeiro box promocional, reunindo os três volumes das antologias críticas Discursos do Corpo na Arte. O conjunto conta com a participação de mais de trinta autores, entre professores da UFSM e docentes de várias universidades brasileiras como UFRGS, UNESP, UNICAMP, USP e PUC.

Nessa entrevista, os organizadores Enéias Tavares, Gisela Reis Biancalana e Mariane Magno se reúnem para relembrar o início do projeto, os desafios e a relação entre corpo, cultura, discurso e arte.

Editora UFSM: Como a organização desses livros se relaciona com suas linhas de pesquisa?

Gisela Biancalana: A organização desses livros está intimamente ligada com minhas pesquisas porque tenho investigado o corpo performativo na arte contemporânea desde que finalizei meu doutorado em 2010. A arte da performance, manifestação que me atraiu desde meus primeiros dias como docente na UFSM, conduziu todo meu fazer investigativo. Este contexto de pesquisa fez com que eu me aproximasse de questões socioculturais e políticas na arte e buscasse transitar, cada vez mais, por uma tênue linha entre arte e ativismo. Portanto, Discursos do Corpo na Arte, foi um espaço de discussão aberto para diferentes olhares para o corpo em estado de arte e que agrega, entre tantos pontos de vista, também o meu.

Enéias Tavares: O projeto teve sua gênese ainda em 2013, quando nós três estávamos – juntos de outros colegas – imersos na tentativa de criarmos um programa de pós-graduação em Arte da Cena. Eu sou de Letras, com uma breve passagem pelo teatro – um fascínio de tempos -, então o eu que trouxe ao projeto foi parte da pesquisa que fazia e continua desenvolvendo no nosso programa de Pós-Graduação em Letras. No meu caso, a representação do corpo no romance, na poesia, na pintura e na cultura, sobretudo entre os séculos XVIII e XIX, séculos que compreendem autores como William Blake, Gustave Moreau e Oscar Wilde. Minhas três contribuições autorais ao projeto versam respectivamente sobre eles a partir da temática dos corpos visionários, dos corpos híbrido-monstruosos e dos corpos marginalizados. Mas confesso aqui minha experiência foi muito mais de aprendizado, sobretudo pela troca com Mariane e Gisela, duas colegas e pesquisadoras exemplares, além de duas grandes amigas.

Editora UFSM: Professora Gisela, de onde surgiu a ideia de organizar esses livros que tratam sobre corpo e arte? Como foi o processo de organização conjunta dos textos que compõem os três livros do Box, livros publicados respectivamente em 2014, 2017 e 2022?

Gisela Biancalana: Naquele momento inicial, mais precisamente em 2013, atravessávamos um período de intenso incentivo à pesquisa no país. Tanto eu quanto Enéias e Mariane tínhamos defendido doutorado recentemente e havia um forte desejo de atuar em pós-graduação. Estávamos, assim, motivados e vendo a necessidade de nos prepararmos com nossas pesquisa e experiência em publicações que nos ajudassem a alavancar esse processo. Percebemos que havia algo que nos unia nesse sentido e, assim, surgiu a ideia da organização da trilogia. Além disso, quando idealizamos o primeiro volume já sabíamos que teríamos muitos assuntos e pessoas para convidar. Assim, desde o início nos programamos para fazer 3 livros. Entretanto, o caminho não foi fácil, pois agrupar tanta gente, administrar os tempos e enfrentar as crises que o ensino público superior atravessou nos últimos anos nos trouxe momentos de desânimo nos quais quase desistimos. Porém, o desejo de continuar e o espírito de parceria e perseverança que nos uniu no começo enfrentou os obstáculos e fomos em frente acreditando sempre na fundamental reunião desses diferentes Discursos.

 

Os organizadores de Discursos do Corpo na Arte com a Vice-Reitora da UFSM: Da esquerda à direita, Martha Adaime, Gisela Biancalana, Mariane Magno e Enéias Tavares


Editora UFSM: Professora Mariane, além de escritora, você é atriz, encenadora e pesquisadora. Eu gostaria de saber mais sobre essas várias atividades e como elas estão presentes em sua vivência acadêmica, como pesquisadora e artista?

Mariane Magno: Muitíssimo obrigada pela pergunta. Para mim, ela é muito cara. Então, agora, o desafio é conseguir distanciar criticamente, de modo suficiente, para respondê-la. Vou me esforçar. Eu explico: Ao lê-la sinto enorme ressonância e repercussão, no sentido poético e bachelardiano do termo. Por sua pergunta, despertam diversas imagens, lembranças e pensamentos, e, por eles, acesso aquele lugar íntimo, solitário, profundo, de liberdade, de diálogo e habitado por inquietações.

Inicio a resposta resgatando minha primeira formação artística que foi em dança. Comecei, como muitas bailarinas, pelo ballet clássico. Depois de uma década e meia, passei pelo jazz, pelo moderno e pelo contemporâneo. Mais adiante, cheguei nas acrobacias aéreas. Resgato esse brevíssimo relato para dizer que a vivência sistematizada do trabalho corporal artístico, e também do esporte, do Yoga, do Tai Chi Chuan e do Kung fu, estiveram muito presentes na minha rotina, e sobre os quais muito me dediquei e ainda me dedico. Muitas camadas de todos esses saberes organizam a minha postura corporal e mental, e também criam certa relação com o mundo.

Me dedico, há décadas, à prática corporal – técnica, sensível e criativa – e entendo que  esse fazer, como em qualquer ofício sobre o qual nos debruçamos com dedicação e seriedade, elabora junto uma certa perspectiva sobre o mundo. Então, na verdade, não há como separar toda essa vivência que envolve a experiência, o aprendizado, a criação constante de conceitos complexos articulados pela singularidade da realidade corporal, a cada dia, de outros aspectos e camadas da minha vida profissional e também pessoal. O que há sim é a procura constante do distanciamento crítico que evita, penso eu, a repetição erma – seja da articulação corporal ou semântica. Refiro-me a utilização desse arcabouço que é vivo, dinâmico e desafiador sobre o qual respeitosa e cuidadosamente me debruço para pensar e organizar, a partir de diferentes recortes, as diretrizes de cada objetivo, seja na ação da pesquisa, do ensino ou da extensão visando a expansão do conhecimento.

 

 

Editora UFSM: Ainda conversando com a Professora Mariane, de que forma essas diferentes expressões artísticas estão presentes em seus escritos?

Mariane Magno: Essa relação com a escrita é sempre um embate arriscado pelo qual se tensionam diversos aspectos, entre eles o eixo horizontal e o vertical. Posso pensar também no complexo diálogo entre o pensamento científico e o poético. Há também o desejo de tentar soltar alguns nós, e de expandir a partir da procura e do contato com outras perspectivas. Há, ainda, todo aspecto experimental e empírico que move e potencializa a criação.

Mesmo sabendo que não é possível alcançar, plenamente, essa resposta, pois ela é viva em seu processo de construção, eu posso afirmar, sob certa perspectiva, que não há diferença entre a precisão buscada pelo treinamento, o corpo construído pelo pensamento e o discurso corporal cênico. Com isso, não quero dizer que o estudo e a prática de uma habilidade e de uma linguagem devem ser confundidos com outra. São saberes que se encontram, se tensionam e dialogam em diferentes expressões.

(Sobre isso, lembro agora de alguns equívocos durante a suspensão da presencialidade, tempo em que algumas práticas das artes presenciais migraram para plataformas de videoconferência. Em abordagens ingênuas, equivocadas ou simplistas toma-se uma coisa pela outra. Para mim, isso é muito sério, sobretudo quando há processos formativos envolvidos. Em abril sai um artigo sobre uma pesquisa que fiz no tempo do trabalho remoto a partir de duas diretrizes práticas, direção e atuação teatral as quais ilumino e penso a experiência cênica e remota sob a luz da heterotopia foucaultiana).

Quando digo que em mim não há diferença, refiro-me a certo posicionamento subjetivo, de encontro e de diálogo comigo mesma. Aquele espaço íntimo. Quero dizer que parece ser a mesma coisa porque sinto como se partisse de um mesmo lugar, no qual me reconheço e me estranho, ao mesmo tempo, e, o qual, me exige fôlego e resistência. Trata-se de habitar um espaço interno e subjetivo, que é fértil de dúvidas, de riscos, de medo e de vontade, como caminhar sobre uma corda bamba. Sou mobilizada por alguma inquietação emergente, e, por isso, penso eu, é gerada essa energia que afirma uma certa postura de trabalho. Para apontar mais sentido ao que quero dizer, e que também me afeta corporalmente, resgato a solidão e a topofilia bachelardianas do seu contexto poético.

Editora UFSM: Professor Enéias, além de professor e pesquisador, você é escritor de ficção e tradutor. De que forma suas vivências em sala de aula influenciaram na escrita e escolha dos textos que compõem essas obras?

Enéias Tavares: Trabalhar nessa série de livros foi uma benção reflexiva, profissional e pessoal. Em primeiro lugar, é um projeto que nos convida a pensarmos o corpo em seus múltiplos sentidos de corpo físico, corpo poético, corpo simbólico, corpo estético e corpo real, concreto, o corpo nosso, que define quem somos, o corpo que nos faz sentir, escrever, viver. Nesse aspecto, esse projeto é um convite a várias áreas e artes a (re)definirem seus corpos representacionais e também de pesquisa. Numa segunda instância, foi uma dádiva poder estar ao lado de colegas como Mariane Magno e Gisele Biancalana, além de outros tantos nomes importantes como Silvia Wolff, Gérson Werlang, Alcides Cardoso dos Santos e tantos outros colegas e sensibilidades que nos auxiliam a sair um pouco do nosso delírio de corpos pensantes para abraçarmos e olharmos para nossos corpos senscientes.

Por fim, além da dimensão reflexiva e profissional, eu destaco o quanto essa obra também tem a ver com uma particularidade muito pessoal. Vivemos numa cultura que negou o corpo desde sempre, seja na tradição clássica platônica quanto na tradição judaica-cristã, e isso tem a ver com objetivação dos corpos, com a negação dos sentidos, com a resistência aos nossos instintos, e tudo isso, se pensarmos bem, é intensificado neste momento da história em que os dispositivos móveis e as redes sociais nos forçam ainda mais a desligar o corpo e a ligar a mente sempre ativa, sempre distraída, sempre convidada a essa multiplicação de imagens. Assim, parar a roda do tempo e da tecnologia e voltar a ver o corpo muda o modo como trabalhamos, escrevemos e vivemos. E acredito que nunca antes essa necessidade de vivermos nossos corpos e respeitarmos nossos corpos e os corpos alheios foi tão importante.

 


Editora UFSM: Professoras, o que seus alunos e leitores podem esperar das obras presentes no box? Qual a sua expectativa quanto a recepção dos livros?

Gisela Biancalana: Os leitores da trilogia Discursos do Corpo na Arte podem esperar, principalmente, um mergulho denso e maleável ao mesmo tempo, de olhares para o corpo em estado de arte. Os textos têm o corpo costurando a unidade dos discursos que transpiram uma infinidade de pontos de vista diversos que compartilham aquele espaço publicado. Os livros podem atender, especialmente, aqueles que procuram ver, justamente, as diferentes possibilidades de olhar para o corpo na arte.

Mariane Magno: Quanto à nossa expectativa, é a melhor a possível. Que esses livros e o Box seja recebido de modo vivo, e que possa gerar mais vida. Em outros termos, que ele repercuta, provoque e desperte excelentes inquietações, perguntas, dissensos, emoções, sensações, novas criações, parcerias, discursos e projetos.

Editora UFSM: Professor Enéias, enquanto diretor da Editora UFSM, como é ver um box com seu nome entre os organizadores sendo lançado?

Enéias Tavares: Trata-se de uma grande alegria, especialmente pelo belo design dos livros – mais claros, elegantes, singelos – em contraste com o box – mais colorido, mais intenso, mais chamativo. Aqui reconheço o belo trabalho do colega de editora, o designer Gustavo de Souza Carvalho, que captou todas essas ideias e a executou em termos gráficos. E claro, para um pesquisador e um escritor como eu, ter meu nome ao lado dos nomes de Gisela e Mariane, duas acadêmicas e artistas que tanto admiro, é uma honra. No caso de Mariane, com quem já trabalhei antes em um espetáculo cênico dedicado aos livros iluminados de Blake, vejo esse Box como mais um projeto em parceria, e um belo projeto.

 

 

Editora UFSM: Professora Mariane, o que a motivou na escrita dos textos presentes nas obras do box? Como você vê esse box enquanto material de pesquisa?

Mariane Magno: Com certeza a principal motivação são os erros, equívocos, dúvidas e curiosidades. Há também outros aspectos, entre eles o da atuação política, o da resistência, o da insubordinação e o do pensamento crítico que a arte consegue produzir. Quanto a ele como material de pesquisa, trata-se de um material riquíssimo, pois sua singularidade reside na pluralidade de obras, de temas, de tempos evocados, de perspectivas apresentadas, e também, pela diversidade de áreas, de artistas, de pesquisadores e de universidades.

Assim, a trilogia Discursos do Corpo na Arte contempla uma multiplicidade de saberes, de obras e de experiências. Essa interdisciplinaridade articula dados preciosos, de diversas obras, conceitos, áreas, formatos e tempos. Ela também apresenta procedimentos de criação, procedimentos pedagógicos, problematizações complexas, reflexões necessárias, e abre portais que são como porosidades na linearidade do pensamento e que podem conduzir ao poético e produzir subjetividade, seja ela acessada, e pensada, pelo corpo, pela alma ou pela unidade. A trilogia é também um suporte da memória, de todos os autores envolvidos. Nesse sentido, é um arquivo do discurso produzido na linha de kronos, o qual, por diversas vezes, é tramado com a presença de aion e kairós.

A trilogia Discursos do Corpo na Arte reúne debates de artistas e pesquisadores sobre diferentes representações artísticas que buscam no corpo um sentido além daquele produzido apenas pela materialidade física.

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